Hemisférios cerebrais e sua funções

érios Cerebrais

hemisférios cerebrais direito e esquerdo

A divisão de trabalho exercida pelos dois lados do cérebro, considerada exclusividade humana, na verdade nos antecede em meio bilhão de anos. A fala, destreza, reconhecimento facial e o processamento de relações espaciais estão presentes em assimetrias do cérebro de vertebrados primitivos.

Revista Scientific American – por Peter F. MacNeilage, Lesley J. Rogers e Giorgio Vallortigara

CONCEITOS-CHAVE

– Os autores propõem que a especia­lização dos dois hemisférios do cérebro já estava em curso quando os vertebrados surgiram há 500 milhões de anos.
– O hemisfério esquerdo originalmen­te parece ser focado no controle geral de padrões de comportamen­to bem estabelecidos; o direito é especializado na detecção e respos­ta a estímulos inesperados.
– Tanto a fala quanto a tendência ao lado direito podem ter sido desenvolvidos através da especia­lização de controle de comporta­mentos rotineiros.
– O reconhecimento facial e o proces­samento de relações espaciais po­dem estar relacionados à herança da necessidade de perceber preda­dores rapidamente.

O hemisfério esquerdo do cérebro humano controla a linguagem, sem dúvida nosso melhor atributo mental. Além disso, tam­bém controla a extraordinária destreza da mão di­reita humana. Já o hemisfério direito é dominante no controle, entre outros, do nosso senso de como as coisas se interrelacionam no espaço. Há 40 anos, o consenso científico estabelecia que eram exclusi­vidades humanas não somente a linguagem como também a destreza e a especialização de apenas um dos lados do cérebro para processar relações espa­ciais. Pensava-se que outros animais não tinham es­pecializações hemisféricas de qualquer tipo.

Essas crenças se encaixam perfeitamente na ideia de que os humanos têm uma importância evolutiva especial. Biólogos e cientistas comportamentalistas geralmente concordam que a destreza se desenvolveu nos nossos ancestrais hominídeos conforme apren­diam a construir e utilizar ferramentas há cerca de 2,5 milhões anos. Além disso, a destreza é tida como a base para a fala. Talvez, conforme o seu desenvolvi­mento, o hemisfério esquerdo simplesmente tenha acrescentado a linguagem de sinais ao seu repertório de habilidades manuais, então convertida para a fala. Outra hipótese é a extensão da capacidade de contro­lar ações manuais até o controle do aparato vocal para a fala. Em ambos os casos, a fala e a linguagem se desenvolveram por meio da produção de ferra­mentas, um talento relativamente recente. Enquanto isso, pensava-se que, depois que o hemisfério esquerdo se especializou na destreza manual, o hemisfério direito se desenvolveu como o padrão do centro de processamento de relações espaciais.

Mas, nas últimas décadas, estudos em muitos outros animais mostraram que seus dois hemisfé­rios cerebrais também possuem papéis distintos. Apesar de tais descobertas, a crença vigente man­tém a idéia de que nos humanos é diferente. Muitos pesquisadores ainda acham que a recente descober­ta da especialização dos dois hemisférios do cére­bro em não humanos não está relacionada à dos humanos. As especializações hemisféricas humanas começaram com humanos.

Apresentamos aqui evidências para uma hipóte­se radicalmente diferente, que ganha espaço princi­palmente entre biólogos. Nossa argumentação é de que a especialização de cada hemisfério no cérebro humano surgiu há cerca de 500 milhões de anos. Sugerimos que as mais recentes especializações dos hemisférios cerebrais, incluindo as humanas, foram desenvolvidas por exemplares originais por meio do processo darwiniano de descendência com modificação. (Nesse processo, as habilidades rele­vantes dos ancestrais são modificadas ou escolhidas para o desenvolvimento de novas características.) Nossa hipótese é que o hemisfério esquerdo do cérebro vertebrado foi originalmente especializado no controle de padrões de comportamento bem estabelecidos sob circunstâncias ordinárias e costu­meiras. Por outro lado, o hemisfério direito, o principal local de excitação emocional, primeiramente se especializou na detecção e resposta a estímulos inesperados do ambiente.

Em vertebrados primitivos essa divisão de traba­lho provavelmente se iniciou quando um ou outro hemisfério desenvolveu a tendência de controle em determinadas circunstâncias. A partir dessa simples introdução, propomos que o hemisfério direito tem o controle primário de circunstâncias potencialmen­te perigosas que necessitam de uma reação rápida do animal, como, por exemplo, detectar um predador se aproximando. Em outras palavras, o hemisfério esquerdo se tornou o local dos comportamentos de automotivação, algumas vezes chamados de contro­le descendente. (Destacamos que o comportamento de automotivação não necessita ser inato; na verda­de, geralmente é aprendido.) O hemisfério direito se tornou o local dos comportamentos motivados pelo ambiente, ou controle ascendente. O processo que direciona comportamentos mais especializados – lin­guagem, fabricação de ferramentas, inter-relação espacial, reconhecimento facial e outros – se desen­volveu desses dois controles básicos.

• O Hemisfério Esquerdo

A maioria das evidências que apoiam nossa hipó­tese não vem da observação direta do cérebro, mas da observação de comportamentos que favo­recem um ou outro lado do corpo. No sistema nervoso do vertebrado, o cruzamento de conexões entre corpo e cérebro, em sua maioria nervos de e para um lado do corpo, está ligado ao hemisfério do lado oposto do cérebro.

Evidências da primeira parte de nossa hipótese­ que o hemisfério esquerdo dos vertebrados é especia­lista no controle da rotina, que são comportamentos direcionados internamente – foram construídas ao longo de muito tempo. Um comportamento rotinei­ro com inclinação para a direita entre muitos verte­brados é a alimentação. Sapos, répteis e peixes, por exemplo, tendem a atacar no lado direito com orien­tação do olho direito e hemisfério esquerdo . Em várias de espécies de aves – gali­nhas, pombos, codornas e pernas-de-pau – o olho direito é o principal guia para várias formas de con­seguir comida com o bico e capturar a presa. Por exemplo, essa preferência por um lado na alimenta­ção, aparentemente resultou numa tendência à late­ralização na anatomia externa do animal. O bico do pássaro neozelandês Anarhynchus frontalis é inclina­do para a direita; dessa forma o olho direito da ave pode guiar o bico na busca por comida sob pequenas pedras dos rios.

Nos mamíferos, o comportamento alimentar das baleias jubarte é um exemplo espetacular da preferência de lateralização para alimentação. Phi­lip J. Clapham, atualmente no Alaska Fisheries Science Center, em Seattle, e seus colegas descobri­ram que entre 75 baleias, 60 tinham apenas o lado direito da mandíbula desgastada. As outras 15 apresentavam desgaste somente no lado esquerdo. Os resultados mostraram uma clara evidência de que determinadas baleias favoreciam um lado da mandíbula na coleta de alimentos e a “destreza mandibular” foi, de longe, predominante.

Em resumo, em todas as classes de vertebrados – peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos – os ani­mais tendem a reter o que foi, provavelmente, uma tendência ancestral sobre o uso do lado direito nas atividades alimentares rotineiras.

A Origem da Destreza

O que esses resultados dizem sobre a alegação de exclusividade da destreza humana? A evidência de lateralização direita em aves e baleias é intrigante, mas dificilmente é um argumento convincente con­tra a antiga crença de que a destreza nos humanos não teve precursores evolucionários. Todavia, mais de uma dúzia de estudos recentes mostram que há uma tendência ao lado direito entre outros prima­tas, nossos parentes mais próximos na evolução ­ claramente sugerindo que a destreza humana des­cende daquela dos primeiros primatas. A preferên­cia pelo lado direito pode ser vista em macacos (babuínos, macacos Cebus e Rhesus), assim como em símios, especialmente chimpanzés.

Muitos dos estudos com macacos foram rea­ lizados por William D. Hopkins, do Yerkes National Primate Research Center; em Atlanta, e seus colegas. O grupo de Hopkins observou pre­ferências pela mão direita, principalmente em atividades que envolvem coordenação com ambas as mãos ou apanhar alimentos em locais muito altos para serem alcançados sem ficar de pé. Por exemplo, pesquisadores colocaram mel, um alimento considerado predileto, em um pequeno tubo de plástico e o entregaram ao macaco. Para retirar o mel, o macaco deveria pegar o tubo com uma das mãos e deslizar com um dedo da mão oposta. Numa razão de 2 para 1, os macacos preferiram utilizar a mão direita para deslizar por cima do tubo e obter o mel. Do mesmo modo, nos experimentos de alcance, os macacos geralmente alcançavam o alimento que desejavam com a mão direita.

As descobertas de Yerkes também sugerem que conforme os primeiros primatas desenvolviam for­ mas mais difíceis e elaboradas de encontrar alimen­to, sua preferência por uma das mãos se tornava mais forte. Suspeitamos que a razão seja que, ao desempenhar tarefas cada vez mais complexas, foi necessário controlar os sinais do cérebro para pas­sar o mais diretamente possível para a mão mais habilidosa. Uma vez que a rota mais direta do hemisfério esquerdo – especializado nas tarefas rotineiras – segue a lateralidade cruzada dos nervos periféricos, a mão direita se tornou a preferida entre os prima tas não humanos para a realização de tare­fas elaboradas, porém rotineiras.

• A Comunicação e o Lado Esquerdo

A descendência evolutiva da destreza humana por meio da modificação do antigo comportamento ali­mentar de seus ancestrais prima tas superiores, ago­ra parece muito provável. Todavia, poderia o com­portamento alimentar também ter resultado na especialização da fala através do lado esquerdo do cérebro? Na verdade, isso não significa que sugeri­mos que esse desenvolvimento foi direto. Em vez disso, argumentamos que a “linguagem do cérebro” surgiu de uma especialização intermediária, e de certa forma menos primitiva, do hemisfério esquer­do do cérebro – em outras palavras, a especialização da comunicação rotineira, tanto vocal como não vocal. Mas, ao contrário de antigas crenças de estu­dantes da pré-história humana, nenhuma dessas habilidades de comunicação surgiu inicialmente com humanos. Essas habilidades também foram descendentes das especializações hemisféricas que apareceram primeiramente em animais que viveram muito tempo antes de surgir nossa espécie.

Por exemplo, estudos com aves mostram que o hemisfério esquerdo controla o canto. Em leões marinhos, cães e macacos, o hemisfério esquerdo controla a percepção de chamado por outros mem­bros da mesma espécie. Rogers, em colaboração com Michelle A. Hook-Costigan, agora na Texas A&M University, observam que saguis comuns abrem mais o lado direito da boca que o esquerdo quando estão chamando amigavelmente outros saguis. As pessoas geralmente também abrem mais o lado direito da boca do que o esquerdo enquanto falam – resultado de maior ativação do lado direito da face pelo hemisfério esquerdo do cérebro.

Poucas coisas são universais na Natureza, porém em alguns animais uma resposta vocal a circunstân­cias altamente emocionais também tem sido relacio­nada ao lado esquerdo do cérebro, e não – como alguns esperavam – ao direito. Quando um sapo macho é preso por trás e imobilizado por um rival também macho, o hemisfério esquerdo parece con­trolar as respostas vocais do primeiro sapo. O hemis­fério esquerdo do camundongo controla a recepção de um sinal de socorro de um filhote, e nos gerbilos controla a produção de chamados durante a cópula. Mas esses animais podem ser exceções. Em humanos e macacos – e talvez na maioria dos outros animais – o lado direito do cérebro controla apenas as voca­lizações altamente emocionais, enquanto o lado esquerdo cuida das vocalizações rotineiras.

Comunicação não vocal em humanos também tem antecedentes evolucionários. Não apenas os chimpanzés tendem a ser destros, mas também favo­recem o uso da mão direita para gestos de comuni­cação. Os gorilas também tendem a incorporar a mão direita em comunicações complexas que envol­vem a cabeça e a boca. Adrien Meguerditchian e Jac­ques Vauclair, ambos da Universidade da Provença, na França, observaram em babuínos uma laterali­zação direita para comunicação manual (bater com a mão no chão).

A significância evolutiva de tudo isso ficou clara assim que alguém notou que humanos também têm a tendência de fazer gestos de comunicação com a mão direita. O comportamento de lateralização que compartilhamos com os babuínos sugere que as comunicações com a mão direita surgiram com a primeira aparição do ancestral parecido com o macaco. Essa criatura surgiu há talvez 40 milhões de anos – muito antes dos hominídeos.

A Evolução da Fala

Uma questão fundamental permanece: como pode qualquer um dos comportamentos já controlados pelo lado esquerdo do cérebro (como alimentação, vocalização, comunicação com a mão direita) ser modificado para se tornar fala – um dos passos mais monumentais da história da vida sobre a Terra?

MacNeilage imaginou que era preciso a evolução da sílaba, a unidade básica organizacional sustentando uma fala no tempo apropriado. A sílaba típica é uma alternância rítmica entre consoantes e vogais. (Consoantes são sons criados quando o trato vocal é momentaneamente fechado ou quase fechado; vogais são os sons criados por meio da ressonância com o formato do trato vocal enquanto o ar circula relativamente livre para fora da boca aberta.)

A sílaba pode ter sido desenvolvida como um sub­produto de um alternado levantar (consoante) e abaixar (vogal) do maxilar, um comportamento já bem estabelecido pela mastigação, sucção e ato de lamber. Alguns desses ciclos produzidos, como esta­ los de lábios, podem ter começado a servir como sinais de comunicação entre os primeiros primatas, como fazem até hoje muitos outros primatas. Algum tempo depois, as habilidades de vocalização da larin­ge podem ter se correlacionado com os estalos de lábios comunicativos para formar as sílabas que foram inicialmente utilizadas para simbolizar con­ceitos individuais, formando assim as palavras. Sub­sequentemente, a habilidade de formar frases (lin­guagem) presumidamente foi desenvolvida quando os primeiros humanos combinaram os dois tipos de palavras que contêm o principal significado das fra­ses: substantivos e verbos.

O Hemisfério Direito

E a outra metade de nossas hipóteses? O quanto é intensa a evidência de que, no início da evolução dos vertebrados, o hemisfério direito se especiali­zou na detecção e resposta de estímulos inespera­dos? De que forma essa especialização foi desenvol­vida e transformada?

Um dos conjuntos de resultados que prestou for­te suporte à nossa hipótese vem dos estudos de rea­ções dos predadores de vários animais. Afinal, pou­cos eventos nos ambientes dos antigos vertebrados poderiam ser tão inesperados e carregados de emo­ção que a súbita aparição de um predador mortal. De fato, peixes, anfíbios, pássaros e mamíferos todos reagem com muita precaução a predadores vistos pelo lado esquerdo de seu campo de visão (lado direito do cérebro) em comparação ao lado direito.

A evidência da mesma especialização hemisféri­ca humana para reações vem dos estudos com ima­gens cerebrais. No resumo desses estudos, Michael D. Fox e seus colegas da Washington University, em St. Louis, concluíram que os humanos possuem um “sistema atencional” no hemisfério direito particu­larmente sensível ao inesperado, e “relevante estí­mulo comportamental” – ou, em outras palavras, o tipo de estímulo que diz, com efeito, “perigo adiante”! A existência de tal sistema atencional aju­da a fazer sentido uma propensão humana de outra forma inexplicável: no laboratório, mesmo as pes­soas destras respondiam mais rapidamente aos estí­mulos inesperados com a mão esquerda (hemisfé­rio direito) que com a direita.

Mesmo em circunstâncias não ameaçadoras, muitos vertebrados mantêm um atento olho esquerdo em qualquer predador visível. Essa espe­cialização do hemisfério direito na presença de predadores também é extensiva a muitos animais com comportamento agressivo. Sapos, camaleões, pintinhos e babuínos têm maior tendência a atacar membros da mesma espécie pelo lado esquerdo que pelo direito.

Nos humanos, os comportamentos relativamen­te primitivos de prevenção e cautela que manifestam a atenção do hemisfério direito em animais não humanos se mesclaram numa variedade de emoções negativas. Médicos do século 19 notaram que os pacientes reclamam com mais frequência de parali­sia histérica dos membros do lado esquerdo que do direito. Já existe alguma evidência para o controle de choros emocionais e gritos pelo hemisfério direi­to do cérebro de humanos – em impressionante con­traste com as vocalizações emocionalmente neutras controladas com o hemisfério esquerdo. As pessoas estão mais propensas a se tornarem depressivas após um dano no hemisfério esquerdo que no direi­to. E, em estados de depressão crônica, o hemisfério direito se torna mais ativo que o esquerdo.

Processo de Reconhecimento

Juntamente com a aparição inesperada de um preda­dor; a mudança ambiental mais importante a que os primeiros vertebrados tinham de reagir rapidamente era a do encontro com outros da mesma espécie. Nos peixes e aves o hemisfério direito reconhece os com­panheiros sociais e monitora o comportamento social que pode necessitar de reação imediata. Por­tanto, o papel do hemisfério direito na percepção facial deve ter descendido das habilidades dos pri­meiros vertebrados de reconhecer a aparência visual de outros indivíduos da mesma espécie.

Por exemplo, a penas algumas espécies de peixes – entre os primeiros vertebrados desenvolvidos – são capazes de reconhecer outro indivíduo peixe, mas as aves, em geral, mostram uma capacidade do hemisfério direito de reconhecer outros dos seus. Keith M. Kendrick, do Babraham Institute em Cambridge, Inglaterra, mostrou que as ovelhas podem reconhecer a face de outras ovelhas (e de pessoas) pela memória, e o hemisfério direito é pre­ferencialmente envolvido. Charles R. Hamilton e Betty A. Vermeire, ambos da Texas A&M, observaram comportamento semelhante em macacos.

Nos humanos, os neurocientistas recentemente reconheceram que o hemisfério direito é especiali­zado no reconhecimento facial. Prosopagnosia, uma desordem neurológica que prejudica essa habi­lidade, mais frequentemente é resultado de dano no hemisfério direito que no esquerdo. Ao expandir o reconhecimento facial para o que parece ser outro nível, tanto macacos quanto humanos interpretam as expressões faciais emocionais com maior exati­dão com o hemisfério direito que com o esquerdo. Acreditamos que essa habilidade é parte de uma antiga capacidade evolutiva do hemisfério direito para determinada identidade ou familiaridade ­ para julgar se o presente estímulo, por exemplo, já foi visto ou encontrado antes.

Global e Local

Defendemos a distinção básica entre o papel do hemisfério esquerdo em ação normal e o papel do lado direito em circunstâncias não usuais. Mas os pesquisadores também têm destacado dicotomias adicionais na função hemisférica. Nos humanos, o hemisfério direito “entende toda a cena”, atenden­do a aspectos globais desse ambiente em vez de focar em um número limitado de características. Essa capacidade oferece vantagens substanciais na análi­se de relações espaciais. As memórias armazenadas pelo hemisfério direito tendem a ser organizadas e relembradas como padrões generalizados, em vez de uma série de itens isolados. Em contraste, o hemisfério esquerdo tende a focar nos aspectos locais de seu ambiente.

Uma notável evidência para a dicotomia global­ local em humanos foi trazida à tona por meio de uma tarefa inventada por David Navon da Univer­sidade de Haifa, em Israel. Pediu-se a pacientes com danos cerebrais que copiassem uma figura compos­ta por cerca de 20 ou mais diminutas letras A maiús­culas que formavam um grande H maiúsculo. A maioria dos pacientes com danos no hemisfério esquerdo fez uma linha simples, desenhando o H sem nenhuma das pequenas letras A incluídas, Já os pacientes com danos no hemisfé­rio direito espalharam de forma não sistemática pequenas letras A por toda a página.

Uma dicotomia semelhante foi detectada em galinhas, sugerindo sua relativamente precoce evo­lução. Richard J. Andrew da University of Sussex, na Inglaterra, e Vallortigara descobriram que, assim como nos humanos, o pintinho doméstico tem uma atenção especial a amplas relações espaciais com seu hemisfério direito. Além disso, pintinhos com o olho direito coberto, portanto recebendo informa­ção apenas do hemisfério direito, mostram interes­se em uma grande variedade de estímulos, sugerin­do que se preocupam com o ambiente global. Pinti­nhos com o olho esquerdo coberto, que podem perceber apenas com o hemisfério esquerdo, focam em características específicas da paisagem local.

Especialização dos Hemisférios

Por que os vertebrados favoreceram a segregação de certas funções em uma ou outra metade do cére­bro? Para avaliar o estímulo recebido, um organis­mo pode aplicar dois tipos de análises simultanea­mente. Deve estimar a novidade geral do estímulo e tomar ações emergenciais decisivas se necessário (hemisfério direito). E deve determinar se o estímu­lo se encaixa em alguma categoria familiar, para então colocar em prática qualquer resposta já pre­estabelecida, no caso de haver alguma que seja necessária (hemisfério esquerdo).

Para detectar a novidade, o organismo deve notar as características que apontam a experiência como única. A percepção espacial exige, na prática, quase que o mesmo tipo de “faro para a novidade”, pois quase qualquer ponto de vista que o animal adote resulta em uma nova configuração de estímulos. Essa é a função do hemisfério direito. Por outro lado, para categorizar uma experiência, o organismo deve reconhecer quais dessas características são recorren­tes, enquanto ignora ou descarta aquelas que são únicas e exclusivas. O resultado é atenção seletiva, uma das habilidades mais importantes do cérebro. Essa é a função do hemisfério esquerdo.

Então, talvez essas especializações hemisféricas tenham desenvolvido primeiro, pois coletivamente processavam de forma mais eficiente e simultânea ambos os tipos de informação em comparação a um cérebro sem tal sistema especializado. Para testar essa ideia, comparamos as habilidades dos animais de cérebro lateralizado com animais da mesma espé­cie, porém, sem lateralização do cérebro. Se sua ideia estivesse correta, aqueles com cérebro laterali­zado poderiam realizar funções paralelas dos hemisférios direito e esquerdo com mais eficiência que aqueles com cérebro não lateralizado.

Felizmente, Rogers já havia mostrado que por meio da exposição de um embrião de um pintinho doméstico à luz e à escuridão antes de sair do ovo, se poderia manipular o desenvolvimento da especia­lização hemisférica para certas funções. Antes de saí­rem da casca, a cabeça dos pintinhos naturalmente se virava e, dessa forma, o olho esquerdo era cober­to pelo corpo e apenas o olho direito podia ser esti­mulado pela luz que passava através da casca do ovo. A luz inicia algumas das especializações hemis­féricas para o desenvolvimento do processamento visual. Incubando os ovos no escuro, Rogers pode­ria prevenir o desenvolvimento das especializações. Ela descobriu, especialmente, que o tratamento no escuro previne o hemisfério esquerdo de desenvol­ver sua habilidade superior normal de selecionar grãos de alimento de pequenas pedras. Além disso, previne que o hemisfério direito seja mais responsi­vo que o esquerdo para predadores.

Rogers e Vallortigara, em colaboração com Paolo Zucca, da Universidade de Teramo, na Itália, tes­taram ambos os tipos de pintinhos em duas tarefas: os pintinhos tinham de encontrar grãos de comida espalhados entre pequenas pedras enquanto moni­toravam a aparição de um modelo de predador por cima da cabeça. Os pintinhos incubados na luz poderiam realizar ambas as tarefas simultaneamen­te, enquanto aqueles incubados no escuro não, con­firmando assim que a lateralização cerebral é um processo mais eficiente.

• “Quebra de Simetria ” Social

Permitindo que o processamento aconteça nos dois hemisférios separadamente e em paralelo pode-se aumentar a eficiência do cérebro, mas não explica o motivo de uma ou outra especialização predominar entre as espécies. Por que, na maioria dos animais, o olho esquerdo (e hemisfério direito) é mais apropria­do para vigilância contra predadores que o direito (e o hemisfério esquerdo)? O que faz a predominância de um tipo de destreza manual ser mais provável que uma mistura simétrica, de 50-50 de ambos?

Do ponto de vista evolucionário, uma quebra na simetria onde as populações são formadas princi­palmente de tipos destros e canhotos, poderia ser desvantajosa, pois o comportamento dos indivíduos seria mais previsível aos predadores, poderiam aprender a atacar do lado menos vigilante da presa, reduzindo assim as chances de serem detectados. A proporção desigual de indivíduos destros e canho­tos em muitas populações indicaria, assim, ser o desequilíbrio tão valioso que persiste apesar da
crescente vulnerabilidade dos predadores. Rogers e Vallortigara sugerem que, entre os animais sociais, a vantagem da conformidade pode estar em saber o que esperar de outros da mesma espécie.

Junto com Stefano Ghirlanda, das Universidades de Estocolmo, na Suécia, e Bolonha, na Itália, Vallor­tigara recentemente mostrou de forma matemática que as populações dominadas por indivíduos des­tros ou canhotos podem de fato aumentar espon­taneamente, se tal população tiver custos e benefí­cios dependentes do número de casos. A teoria matemática de jogos mostra que o melhor curso de ação de um indivíduo pode depender da decisão da maioria do seu próprio grupo. Aplicando a teoria de jogos, Ghirlanda e Vallortigara demonstraram que o comportamento destro ou canhoto pode evo­luir em uma população sob pressão de seleção social – ou seja, quando indivíduos assimétricos devem se ajustar a outros de sua espécie. Por exem­plo, é provável que cardumes de peixes desenvol­vam, na maioria das vezes, uma preferência unifor­me de rotação. Um peixe solitário, por outro lado, provavelmente irá variar aleatoriamente sua prefe­rência de movimentos, pois tem menos necessidade de nadar em grupo.

Sabendo-se que o cérebro assimétrico não é espe­cificamente dos humanos, surgem novas questões sobre um número maior de funções humanas, como o papel relativo dos hemisférios esquerdo e direito na autopercepção, consciência, empatia e capacida­de de ter lampejos de ideias. As descobertas descri­tas sugerem que essas funções serão mais bem com­preendidos em termos da descendência com modificações das habilidades pré-humanas.

Para conhecer mais

Comparative vertebrate lateraliza­tion. Editado por Lesley J. Rogers e Richard J. Andrew. Cambridge Universi­ty Press, 2002.
Advantages of having a lateralized brain. Lesley J. Rogers, Paolo Zucca e Giorgio Vallortigara, em Proceedings of the Royal Society B, vol, 271, supl 6, págs. 5420-5422,7 de dezembro de 2004.
Survival with an asymmetrical brain: advantages and disadvanta­ges of cerebral lateralization. Gior­gio Vallortigara e Lesley J. Rogers, em Behavioral and Brain Sciences, vol, 28, nº 4, págs. 575-633, agosto de 2005.
The origin of speech. Peter F. MacNei­lage. Oxford UniversityPress, 2008.
Mechanisms and functions of brain and behavioural asymmetries. Luca Tommasi, em Philosophical Transactions of the Royal Saciety B, vaI. 364, págs. 855-859, 12 de abril de 2009.

Os Autores

Peter F. MacNeilage é professor de psicologia da University of Texas em Austin. Já escreveu mais de 120 artigos sobre a evolução de sistemas de ação complexos. Seu livro, The origin of speech, foi publicado no ano passado pela Oxford University Press.
Lesley J. Rogers é professora eméri­ta de neurociência e comportamento animal da University of New England, na Austrália. Ela descobriu a lateraliza­ção no cérebro anterior de pintinhos quando ainda se pensava que a lateralização era uma característica única do cérebro humano.
Giorgio Vallortigara é professor de neurociência cognitiva do Centro de Ciências do Cérebro/Mente e do Departamento de Ciências Cognitivas da Universidade de Trento, Itália. Com Rogers, ele descobriu a primeira evidência da assimetria funcional do cérebro em peixes e anfíbios.